RIR É FAZER AS PAZES CONSIGO MESMO

Entrevista concedida em 13.08.2012 por Carlos Biaggioli à Adeli Ferreira no seu programa da Rádio Mundial: "Homeopatia, a Saúde do Ser"

Adeli Ferreira – Este programa sempre traz um texto ou algo assim como ponto de partida para alguma reflexão. Hoje será diferente. Está aqui um grande amigo, Carlos Biaggioli, criador do Palhaço Delfino Anfilófio Petrúcio, PhD em Charme, Beleza, Elegância, Gostosura e Sapiência, formado pela Universidade da Modéstia e pós-especializado em Coisíssima-Nenhuma-e-Algo-Mais! Vamos conhecer um pouco sobre o trabalho que ele desenvolve...

Carlos Biaggioli – Obrigado, Adeli, por esta oportunidade de compartilhar com seus ouvintes a pesquisa que a gente desenvolve desde a fundação do Teatro de Rocokóz, em 1998, mesma época em que, a partir da experiência com o palhaço no ambiente hospitalar (que se irradiou pelo mundo inteiro, incluindo o Brasil), a gente viu que, sim, o riso tem uma função social bastante importante e desejou descobrir como se colocar diante disto com o nosso ofício.
Palhaço é um ofício. A gente milita, nas redes sociais e em todas as oportunidades que nos aparecem, para desvincular a palavra “palhaço” do xingamento, da imagem pejorativa. Por que protestar, por exemplo, contra a corrupção ou qualquer coisa ruim usando a máscara do Palhaço? A nosso ver, ela tem uma função diametralmente oposta, que é canalizar a energia da alegria (um dos conceitos que o ser humano mais deixa de lado). Ciléia, minha esposa, sempre provoca nossos alunos: “A alegria ainda é considerada algo supérfluo”.
– Ah, eu não tenho o que fazer agora, então vou ser alegre um pouquinho, porque eu sou um homem sério, tenho minhas preocupações, eu tenho que... eu tenho que... eu tenho que... E, com isso, ao irmos deixando a alegria de lado, poucas vezes se pensa no conceito: o que é “alegria”?
A partir deste trabalho que a gente começou a fazerno ambiente hospitalar em 1996, a gente percebeu que a alegria é um estado-de-espírito. A gente só consegue estar alegre quando está íntegro. E a alegria tem o tempo que a alegria tem, totalmente permeado de momento presente. Ninguém consegue ser alegre no passado ou no futuro, porque já foi ou ainda não veio. Só se consegue estar alegre estando íntegro no momento presente. Então, nos hospitais, a gente começou a observar os pacientes, fosse criança, adulto ou idoso. Aliás, diga-se de passagem, a gente também logo percebeu que a atuação de palhaços junto a crianças era quase como “chover no molhado”, “pregar para convertido”! Tanto é que foi uma criança que nos levou para atuar com os adultos:
– Vamos lá, Palhaço! Os tios estão precisando de você mais do que eu...
– Só se você for comigo!
– Eu vou de “enfermeira”... – e nos conduziu para lá, para lidar com os adultos e idosos.
Lá, havia pessoas prostradas, mas totalmente medicadas, tudo dentro dos conformes. Então, como a pessoa não estava bem? Não estava viva, mesmo (não somente no sentido clínico do termo): não bastava estar respirando, com os olhos abertos ou o coração batendo. Nada disso. Estar vivo seria estar vivendo uma surpresa, um momento agradável, sentindo vontade de se levantar.
Assim, a gente começou a fazer algumas experiências com a nossa arte. A gente chegava, observava um pouquinho para perceber o que é que a pessoa estava sentindo falta, naquele momento. Às vezes ela queria bater um papo, outras vezes ela queria cantar ou ouvir uma música, ali, tocada para ela, enfim, ela queria um relacionamento humano, mais próximo. Ela queria tocada...
Adeli – Olhada...
Carlos – Tocada por dentro! Há pessoas que fazem isso nos locais de convalescença através de rezas ou de diversas outras formas; no nosso caso, a gente foi buscar fazer isso através do Humor, ou seja, serenatas para as pessoas mais idosas; ou, para crianças muito pequenas ou pessoas em estado de certa letargia, mas que estava, dentro de um certo nível, conscientes, a gente unia imagens (bolhas de sabão) com música. A gente foi descobrindo conforme o tempo foi passando e foi vendo, cada vez mais, que, conforme a gente surpreendia a pessoa com estímulos de alegria, a pessoa se modificava no leito. Ou ela se virava para um dos lados, ou ela levantava a mão para reagir à brincadeira e algumas até chegavam se recostar na cabeceira, sozinhas. Isso a gente via como um “ato de se levantar, de sair da prostração”. Essa certeza, então, veio de uma forma muito natural e empírica.
Depois a gente resolveu estudar, a velha história: fazer os outros falarem pela gente, corroborando aquilo que a gente acredita. Naquela época, chegou às nossas mãos o livro “A Psicossomática do Riso”, do francês Henry Rubinstein, que eu traduzi do Espanhol. Ele serviu de base para a gente tentar compreender o que uma boa gargalhada provoca no organismo humano. Em “O Tao da Física”, o físico quântico Fritjof Capra define a gargalhada “como um momento de iluminação”. O Rubinstein demonstrou, sistematicamente, que, durante uma gargalhada, a gente consegue, organicamente, massagear nossas vísceras e nossos aparelhos respiratório, digestivo, reprodutor e cardíaco, tudo por conta daquele sacolejo que o corpo sofre, num momento de extremo prazer... extrema alegria! É um momento em que todas as amarras da razão se rompem, nem que seja por meio segundo: a tal iluminação referida pelo Capra, isto é, quando o ser vai além de si mesmo e se integra. Alegria é uma possibilidade em que o ser humano consegue estar UNO. Sou capaz de apostar com você: quem está alegre raramente julga, nem a si mesmo e nem ao outro; raramente quer mal. É um momento em que ele se congraça com quem está ao seu redor.
Há, porém, níveis e níveis de estímulos de alegria, não é? Vai da piada chula aos momentos genais do Chaplin, nos quais o riso nos leva a camadas de lirismo que perduram até para a vida toda, a gente continua pensando naquilo. No nosso ponto de vista, essa é a função do Riso.
No que diz respeito à questão da cura, quando a gente ri, na verdade a gente está fazendo as pazes com determinadas coisas. As pazes, mesmo! E é com a gente mesmo. A gente até pode rir do outro, mas está fazendo as pazes com aquilo que a gente sente a respeito do outro, com o olhar que se tem do outro. É tudo com a gente mesmo. A risada tem esse feito curador e curativo.
É importante que a pessoa faça as pazes com o seu ridículo (palavra esta que é o “temor dos temores do mais temido temor temido”!). RIDÍCULO: todo mundo tem pavor de ser. Por que? O que é ser ou estar “ridículo”? Nós escolhemos como conceito disto aquilo que foge do padrão vigente na sociedade em que a gente vive, portanto, aí estão as nossas crenças religiosas, sociais, familiariares, educacionais, midiáticas, etc., tudo que constitua padrões considerados “normais”. O ridículo é o contrário do normal.
Então, para a gente conseguir estar bem, rir de si mesmo – que é o objetivo que a gente persegue nos nossos “Retiros de Palhaço” – é importante que a gente olhe para dentro, ou seja, no espelho: não tem outro jeito. Que detecte aquilo que na gente foge ao padrão e, por isso, a gente tenta (às vezes desesperadamente) ocultar. E que a gente dance, brinque com isso e faça com que isso seja gostoso – primeiramente para si mesmo. Quando a gente consegue fazer de forma que seja gostoso para a gente, a gente faz as pazes com a nossa originalidade, com essa nossa lógica própria, com esse nosso modo de ver e sentir a vida, de se relacionar e de sentir o outro, e de perceber que não existe o lado de fora, que está todo mundo junto e misturado, quando a gente faz essas pazes, brinca e consegue rir disso, pronto! Ali houve uma cura.

Adeli – No conceito da Homeopatia de “caminho de cura”, ela não significa a gente negar ou excluir algum processo, muito pelo contrário: você dá um medicamento ou alguma coisa que mostre ao organismo aquilo que precisa ser transformado, e então curado. É esse olhar no espelho o caminho pelo qual a gente pode curar qualquer coisa, pois projeta o que a gente tem e, daí, é possível transformar com mais leveza, com mais graça, com mais tranqüilidade.
Carlos – No caso da busca do Palhaço, no nosso trabalho já faz tempo que a gente abriu mão de acreditar que a gente “dá curso para palhaços”. Não, o nosso curso visa o auto-conhecimento, o que pode ser usufruído inclusive por palhaços e atores. Pelos “retiros” já passaram cineasta, PhD da USP, dona de casa, jornalista, músico, roteirista, estudante e gente de tantas outras áreas. A máscara vermelha do palhaço (a que menos esconde e mais revela) é um pretexto que a gente oferece para que as pessoas tenham oportunidade de fazer essas pazes, olhando para si mesma e sendo colocada em situações monitoras de exposição. É algo que a gente desenvolve desde 2004, portanto, a gente já tem determinados graus de certeza... É, portanto, um pretexto para que o “retirante” detecte o que nele é só dele e que, assim, cause no outro uma impressão gostosa, risível.
Nesse percurso, a gente acaba até conseguindo trazer à tona os “fontes perniciosas” de riso: o deboche, o escárnio, a ironia, o cinismo. A gente não vai ser ingênuo de negar. Mas não ninguém chega à outra margem se não atravessar a ponte – e, de preferência, queimá-la, porque, às vezes, a pessoa não consegue queimar a ponte e permanece no zigue-zague até que definitivamente resolva largar mão dessas coisas e partir para um novo tipo de humor. Todo tipo de humor é saudável, uma vez que ele reflete o ponto em que a pessoa se encontra na caminhada. Isso tem que ser respeitado. Você gosta de piada chula? Maravilha, mas que se tenha consciência de que você está nesse ponto até o momento em que você se cansar dele e ver que há outras camadas de humor também tão boas e que vão lhe trazer novos tipos de sacações, percepções e tudo o mais.
Esse trabalho tem nos tem trazido muita alegria e muitos desafios, pois a gente toca em determinados pontos das pessoas em que elas até acabam se achando num beco sem saída. No entanto, quando, ali, as outras pessoas começam a rir desse tipo de situação (impressão), o “retirante” na maior parte das vezes acaba percebendo que essa energia que ela gera – e que é só dela! – move alguma coisa boa na turma. Então, acaba fazendo as pazes com isso e descobrindo que não está nem num beco e nem sem saída. Descortina-se um mar de possibilidades novas pela frente e que a vida é bem mais leve, mais tranqüila. Todo mundo está junto, ninguém tem carteirinha-de-santo, pois, se tivesse, não estaria mais nesse planeta. A gente é feito da mesma matéria e a gente está “condenado a ser feliz”.

Adeli – Não tem escapatória!
Carlos – O nosso “retiro” é um curso intensivo em sistema de confinamento, no qual as pessoas ficam hospedadas durante quatro dias em nossa sede, atualmente situada na região de Parelheiros, numa belíssima chácara em meio à Mata Atlântica. Nesses dias, a convivência é a nossa principal ferramenta e os “retirantes” pernoitam em sistema de acantonamento, passam por massagem, meditação e também uma alimentação especialmente pensada. Enfim, é uma oportunidade para que cada um tente, no dia a dia, se abrir para o fato de que, na realidade, a alegria é uma energia que deveria estar entre os pratos principais do cardápio da Vida, pois ela reflete quem a cada um é. Em outras palavras: dize-me o teu grau de alegria e eu te direi em que ponto do caminho da evolução tu estás.
As pessoas ainda cultuam demais a tristeza e a seriedade como caminho da “remissão de pecados”. É o contrário! Lembra daquela definição: “enquanto o homem pensa, Deus ri”¿ A gente vive muito no passado ou no futuro e, com isso, perde as jóias que a vida vai colocando diariamente na nossa frente. Ontem mesmo, um vaso de flor me arrebatou! Meu Deus do céu, como o ser humano se arvora numa condição de genial e não é capaz de criar uma flor daquela. Eu sei que a arte é um dom humano, mas criar algo com vida tão delicada, fiquei impressionado..

Adeli – A gente fala de coisas muitas sérias, ditas tão importantes, e acaba esquecendo de conversar sobre essas coisas. A finalidade da gente olhar com responsabilidade para vida não é forjar a vida com um padrão de rigidez e formalidade, muito pelo contrário. A formalidade é só necessária, mas não é a finalidade. A finalidade é estar vivo, livre, feliz consigo mesmo.
Carlos – É só uma bússola, não é o Caminho.
Adeli – Segundo o criador da Homeopatia, a finalidade da Cura é que a gente esteja livre para atingir os mais altos fins da nossa existência: ser feliz.
Carlos – Um caminho para isso é a gente conseguir rir de si mesmo. O resto vem por conseqüência. A gente perde muito tempo se levando demais a sério. A gente não sabe de onde veio nem para onde vai. A única certeza que a gente tem é o momento presente. Será que vale a pena desperdiçar essa única certeza estando triste?
Adeli – Muito obrigada.